Rachel de Queiroz
No céu claro passaram roncando dois enormes aviões. Pelo feitio ou pela pintura os rapazes conheceram que era da FAB. E um dêles, que ouvira o rádio do jipe, explicou: - É o marechal, que vai ao Cariri fazer propaganda eleitoral.
Lembrou-me a minha velha mestra de música, Dona Elvira Pinho, abolicionista e republicana histórica, mulher de rígida virtude particular e cívica.
Uma de suas alunas era filha do governador e vinha para as aulas no carro oficial.
E D. Elvira interpelava a garôta, em plena classe: “Como vai o nosso automóvel? Você tem agradecido aqui às meninas o empréstimo do carro para você passear?
Sim, porque tanto o automóvel como o motorista, a gasolina, tudo é nosso - nós que pagamos!”
A menina ficava encabulada ou furiosa, não sei, e Dona Elvira, abandonando a teoria musical, dava um aula de boa ética republicana.
Que tudo pertence ao povo, pois quem paga é o povo.
Os governantes que gastam consigo o dinheiro dos contribuintes estão usurpando essas regalias - aliás, a própria palavra está dizendo: regalia - privilégio do rei!
República não tem rei, e, assim, os governantes republicanos não deviam ter palácios para as suas famílias nem carros oficiais para passear os meninos, nem comida e luxo à custa do povo.
Tudo isso abolimos no 15 de Novembro, mas tudo tem voltado - só falta voltar o rei! (como era uso entre os republicanos históricos, D. Elvira só chamava o imperador “o rei”).
Até a ditadura ainda havia um certo pudor.
Talvez porque ainda restassem vivos muitos republicanos da cêpa de D. Elvira.
Com o Estado Novo, todo o mundo amordaçado, sem ninguém para estrilar, o hábito da regalia se universalizou.
Os homens públicos deixaram de separar o que era do Estado e o que era dêles, ou antes, o uso e abuso dos bens públicos passou a ser privilégio dos cargos e, por extensão natural, da parentela dos cargos.
Ninguém se lembra mais da origem do dinheiro com que se custeia o luxo dos poderosos - aquêles ínfimos impostos que o pobre mais pobre tem que pagar: o cruzeiro a mais no preço do feijão, da farinha, do metro de pano, a licença para vender um pé de alface ou um chapéu de palha.
Talvez se êsses aproveitadores da riqueza pública - e entre êles haverá muitos homens honestos - se detivessem um instante a pensar de que pobreza, de que miséria, provém aquela riqueza, que não foi para tal fim que a arrancaram ao triste contribuinte; que aquêle automóvel do seu uso talvez custe dez leitos que faltam num hospital; que aquêle passeio de avião talvez represente mais cem analfabetos; que aquela comissão no estrangeiro valha por alguns quilômetros de estrada; que aquêle piquenique oficial em Brasília talvez esteja custando o DDT que iria acabar a malária numa região inteira ou o barbeiro - em outra; se êles pensassem, talvez recuassem envergonhados, e devolvessem o seu a seu dono.
Mas êles não se lembram. Vêem apenas o dinheiro fácil, abundante, bom de gastar. Dizem que se um não gastar, outro gasta.
E, acima de tudo, convencem-se de que êles próprios e os seus é que representam o Estado, e que emprêgo da fazenda pública em regalias pessoais para os que encarnam o Estado, é tão legítimo quanto os gastos em ordenados de professôras, em remédios para os ambulatórios.
Aquêles dois aviões, gastando material, gasolina e pessoal, tudo pago pelo povo, para que um candidato faça a sua propaganda, sei que é uma gôta de água na torrente dos gastos indevidos de dinheiros públicos, mas são um símbolo, ou uma amostra de como anda completamente desvirtuado aquilo que se pode chamar o pacto de govêrno, feito entre o povo e os seus líderes.
Quando se funda uma nação, o povo promete obedecer aos seus chefes escolhidos e pagar uma percentagem determinada sôbre tudo que produzir, para o sustento da indispensável máquina de direção e defesa nacional.
Os líderes, por sua vez, juram não ser mais que fiéis servidores do povo que os emprega. Mas parecem que juram à falsa fé.
Porque, mal se apanham com a máquina nas mãos, esquecem de quem é o dono e de quem é apenas o gerente.
Transfere para a sua pessoa, a grandeza que só era do cargo. Querem palácios condignos, carruagens condignas, tratamento condigno, privilégios condignos. Aí, a palavra que eles mais apreciam é essa - condigno!
E nessa preocupação de se regalarem a si, acabam esquecendo para que subiram tão alto, e se convencem de que o povo existe apenas para sustentar o Govêrno, e não o Govêrno para servir o povo.
É a velha história da criatura que devora o criador. E a tal ponto chega a confusão de valores que, de consciência limpa e coração aberto, montados no dinheiro do povo, gastando a mãos abertas os impostos que o povo paga, querem convencer o povo, através de veículos, auto-falantes, propaganda impressa que o povo custeia, que são excelentes, honestos e indispensáveis e merecem tôdas as consagrações!
E a gente fica pensando, se aparecer por aí um demagogo que saiba explorar essas contradições tão primárias. Que mostre que pode ser administrador dos dinheiros alheios, sem tirar dêle a parte do leão. Um homem, por exemplo, que pagasse as suas passagens nos aviões, quando quisesse vir arengar às massas do interior. Que morasse em casa sua, que usasse roupa, comida, automóvel, trem - tudo pago com o suor do seu rosto. E que desse uma garantia de continuar assim, mesmo quando a chave dos cofres estivesse em suas mãos. E que fôsse capaz de obrigar os seus subordinados a se portarem também assim.
Que fôrça terrível, que prestígio espantoso não adquiriria um homem dêsses. Um homem que garantisse um govêrno onde o pacto republicano se cumprisse com escrúpulo, onde o dinheiro de escola fôsse para escola, e confisco de dólar do café fôsse mesmo para pagar trigo e gasolina, e verba de soldado fôsse para comprar espingarda e fardamento.
Um homem que realizasse tal milagre - já pensaram o que conseguiria do povo um homem desses.
Até dá vertigens pensar. Talvez o divinizassem, como aos Césares.
E, então, o homem, enlouquecendo com o tamanho da sua fôrça, vendo-se César, iria adquirindo as deformações de todos os Césares, e acabaria esquecendo o pacto inicial que fundara a sua fôrça, - e se corrompia, também e aí começava tudo de novo...
Publicado na revista "O Cruzeiro, 12 de setembro de 1959".
* o título, bem como a ortografia e a gramática, são da autora e da época em que foi escrito.
Lembrou-me a minha velha mestra de música, Dona Elvira Pinho, abolicionista e republicana histórica, mulher de rígida virtude particular e cívica.
Uma de suas alunas era filha do governador e vinha para as aulas no carro oficial.
E D. Elvira interpelava a garôta, em plena classe: “Como vai o nosso automóvel? Você tem agradecido aqui às meninas o empréstimo do carro para você passear?
Sim, porque tanto o automóvel como o motorista, a gasolina, tudo é nosso - nós que pagamos!”
A menina ficava encabulada ou furiosa, não sei, e Dona Elvira, abandonando a teoria musical, dava um aula de boa ética republicana.
Que tudo pertence ao povo, pois quem paga é o povo.
Os governantes que gastam consigo o dinheiro dos contribuintes estão usurpando essas regalias - aliás, a própria palavra está dizendo: regalia - privilégio do rei!
República não tem rei, e, assim, os governantes republicanos não deviam ter palácios para as suas famílias nem carros oficiais para passear os meninos, nem comida e luxo à custa do povo.
Tudo isso abolimos no 15 de Novembro, mas tudo tem voltado - só falta voltar o rei! (como era uso entre os republicanos históricos, D. Elvira só chamava o imperador “o rei”).
Até a ditadura ainda havia um certo pudor.
Talvez porque ainda restassem vivos muitos republicanos da cêpa de D. Elvira.
Com o Estado Novo, todo o mundo amordaçado, sem ninguém para estrilar, o hábito da regalia se universalizou.
Os homens públicos deixaram de separar o que era do Estado e o que era dêles, ou antes, o uso e abuso dos bens públicos passou a ser privilégio dos cargos e, por extensão natural, da parentela dos cargos.
Ninguém se lembra mais da origem do dinheiro com que se custeia o luxo dos poderosos - aquêles ínfimos impostos que o pobre mais pobre tem que pagar: o cruzeiro a mais no preço do feijão, da farinha, do metro de pano, a licença para vender um pé de alface ou um chapéu de palha.
Talvez se êsses aproveitadores da riqueza pública - e entre êles haverá muitos homens honestos - se detivessem um instante a pensar de que pobreza, de que miséria, provém aquela riqueza, que não foi para tal fim que a arrancaram ao triste contribuinte; que aquêle automóvel do seu uso talvez custe dez leitos que faltam num hospital; que aquêle passeio de avião talvez represente mais cem analfabetos; que aquela comissão no estrangeiro valha por alguns quilômetros de estrada; que aquêle piquenique oficial em Brasília talvez esteja custando o DDT que iria acabar a malária numa região inteira ou o barbeiro - em outra; se êles pensassem, talvez recuassem envergonhados, e devolvessem o seu a seu dono.
Mas êles não se lembram. Vêem apenas o dinheiro fácil, abundante, bom de gastar. Dizem que se um não gastar, outro gasta.
E, acima de tudo, convencem-se de que êles próprios e os seus é que representam o Estado, e que emprêgo da fazenda pública em regalias pessoais para os que encarnam o Estado, é tão legítimo quanto os gastos em ordenados de professôras, em remédios para os ambulatórios.
Aquêles dois aviões, gastando material, gasolina e pessoal, tudo pago pelo povo, para que um candidato faça a sua propaganda, sei que é uma gôta de água na torrente dos gastos indevidos de dinheiros públicos, mas são um símbolo, ou uma amostra de como anda completamente desvirtuado aquilo que se pode chamar o pacto de govêrno, feito entre o povo e os seus líderes.
Quando se funda uma nação, o povo promete obedecer aos seus chefes escolhidos e pagar uma percentagem determinada sôbre tudo que produzir, para o sustento da indispensável máquina de direção e defesa nacional.
Os líderes, por sua vez, juram não ser mais que fiéis servidores do povo que os emprega. Mas parecem que juram à falsa fé.
Porque, mal se apanham com a máquina nas mãos, esquecem de quem é o dono e de quem é apenas o gerente.
Transfere para a sua pessoa, a grandeza que só era do cargo. Querem palácios condignos, carruagens condignas, tratamento condigno, privilégios condignos. Aí, a palavra que eles mais apreciam é essa - condigno!
E nessa preocupação de se regalarem a si, acabam esquecendo para que subiram tão alto, e se convencem de que o povo existe apenas para sustentar o Govêrno, e não o Govêrno para servir o povo.
É a velha história da criatura que devora o criador. E a tal ponto chega a confusão de valores que, de consciência limpa e coração aberto, montados no dinheiro do povo, gastando a mãos abertas os impostos que o povo paga, querem convencer o povo, através de veículos, auto-falantes, propaganda impressa que o povo custeia, que são excelentes, honestos e indispensáveis e merecem tôdas as consagrações!
E a gente fica pensando, se aparecer por aí um demagogo que saiba explorar essas contradições tão primárias. Que mostre que pode ser administrador dos dinheiros alheios, sem tirar dêle a parte do leão. Um homem, por exemplo, que pagasse as suas passagens nos aviões, quando quisesse vir arengar às massas do interior. Que morasse em casa sua, que usasse roupa, comida, automóvel, trem - tudo pago com o suor do seu rosto. E que desse uma garantia de continuar assim, mesmo quando a chave dos cofres estivesse em suas mãos. E que fôsse capaz de obrigar os seus subordinados a se portarem também assim.
Que fôrça terrível, que prestígio espantoso não adquiriria um homem dêsses. Um homem que garantisse um govêrno onde o pacto republicano se cumprisse com escrúpulo, onde o dinheiro de escola fôsse para escola, e confisco de dólar do café fôsse mesmo para pagar trigo e gasolina, e verba de soldado fôsse para comprar espingarda e fardamento.
Um homem que realizasse tal milagre - já pensaram o que conseguiria do povo um homem desses.
Até dá vertigens pensar. Talvez o divinizassem, como aos Césares.
E, então, o homem, enlouquecendo com o tamanho da sua fôrça, vendo-se César, iria adquirindo as deformações de todos os Césares, e acabaria esquecendo o pacto inicial que fundara a sua fôrça, - e se corrompia, também e aí começava tudo de novo...
Publicado na revista "O Cruzeiro, 12 de setembro de 1959".
* o título, bem como a ortografia e a gramática, são da autora e da época em que foi escrito.
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